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Moisés e o Mar das Canas
Moisés é uma figura-chave na história de Israel. De acordo com a Bíblia nasceu no Egipto e descendia de exilados da tribo de Levi. Viveu na corte egípcia. Tendo encontrado Deus, no deserto, tornou-se o chefe dos "filhos de Israel"1.
A opinião mais espalhada é a de admitir que a sua vida e obra se situem na 18ͺ dinastia egípcia, entre os reinados de Ramsés II e Lucero (1300-1200 a.C.). Interessa, portanto, examinar as tradições associadas a Moisés, numa perspectiva histórico-crítica, a qual, precisamente por ser a suprema norma para a interpretação de um texto, que é a de ver e definir o que o escritor pretendeu dizer, permitirá, assim, conhecer o que o autor quis exprimir com certas palavras num determinado contexto.
Comecemos, então, por traçar o retrato de Moisés.
O seu nome é egípcio. "Moisés" é um sufixo que significa "júnior", "filho de" ou "menino" como em Tutmósis (Thot-moses, filho do deus Thot). Com o tempo, a palavra Moisés substituiu o nome teóforo completo, mais complicado, provavelmente composto por um patronímico divino como Ámon ou Ptah. O significado habitual da palavra supostamente hebraica, "salvo das águas", é errado e não passa de etimologia popular2. De facto, a história do salvamento das águas é pouco consistente. O banho dos membros da casa real do Egipto era tomado nos palácios, e tinha ritual próprio. Nunca foi um acto público. O historiador judeu Fávio José (37-95 d.C.) percebeu este erro e referiu apenas um "passeio à beira-rio". Além disso, a história do salvamento de Moisés é comum a vários outros mitos antigos, como o de Rómulo, que foi abandonado nas águas do Tibre3; de Édipo4 ou Perseu5, que tiveram a mesma sorte: foram encerrados em cofres de madeira e lançados ao mar. Todos estes heróis estavam fadados para longos e difíceis trabalhos e sempre com auxílio divino.
Diz-se que Moisés foi educado na corte do faraó. Esta hipótese pode ter algum fundamento em virtude do seu nome egípcio. Mas, neste caso, deveria ter absorvido, em algum grau, a cultura e saber egípcios. Figura importante para cristãos e muçulmanos, Moisés é o fundador e legislador, o autor da Tora, a lei, destinada ao povo judaico. Se ele tivesse vivido no meio da alta cultura egípcia (At 7,22), por certo teria conhecido as reformas religiosas do século XIV a.C.  a doutrina de Akhenaton (ca. 1364-1347 a.C.). Poder-se-ia mesmo pensar que a nova religião fosse uma fonte e estímulo para Moisés. Mas não encontramos qualquer reflexo dessa cultura na religião moisaica, nem termos de conteúdo nem de estrutura sociopolítica6. Parece que, pelo contrário, a influência mais substancial na formação religiosa de Moisés provém do seu sogro, madianita. Jetro era um sacerdote de Madiã e associa-se, ou preside, a uma festa dos israelitas em que celebraram a libertação do Egipto (Êx. 18,12).
O nome de Moisés, o legislador, nem sequer aparece nos textos hieroglíficos do Egipto ou cuneiformes da Mesopotâmia. As fontes egípcias ignoram por completo as catástrofes que se abateram sobre o Egipto, aliás dramáticas, segundo a Bíblia  as dez pragas  e a sua dimensão miraculosa. Será possível que séculos de escravidão de um povo inteiro não tenha deixado vestígios a não ser na Bíblia?
Façamos agora a árvore genealógica de Moisés, incluindo nela os descendentes a que se referem os livros bíblicos (Crónicas, e Êxodo, 6,20 e Números, 26,59). A lista dos familiares fica assim ordenada: Adão  Set  Enós  Quenan  Malaliel  Jared  Henoc  Matusalém  Lamec  Noé  Sem  Arfaxad  Chela  Héber  Peleg  Reú  Serug  Naor  Tera  Abraão  Isaac  Jacob  Levi (1 Cr 1,1-51, 2,1)  Queat  Ameram (1Cr 6,1-3)  Moisés (Êx. 6,20; Nm 26,59)  Gerson  Libni.
Podemos contar assim vinte e oito gerações, que é o mesmo número de dias do mês segundo o calendário lunar, o que reforça a tese que defende haver muitas alegorias astronómicas veladas pelos textos bíblicos, como ensina Max Heindel7. De facto, os calendários primitivos eram lunares. Hoje em dia, todas as nações cristãs usam o calendário gregoriano, que é solar. O mundo maometano rege-se por um calendário lunar que começou a vigorar no ano 622 da era cristã. E a religião judaica rege-se por outro calendário, também lunar, que, segundo a tradição, já era usado pelos judeus desde o cativeiro da Babilónia, mais de cinco séculos antes de Cristo.
Um ponto alto na vida do Moisés bíblico é a travessia do mar das Canas (a expressão Yam Souf significa literalmente mar das Canas, ou dos Juncos, e não "mar Vermelho", como é vulgarmente traduzido). As tentativas para reconstituir o itinerário da marcha, identificar o local da realização da aliança, da legislação, bem como da travessia, têm sido inúteis. Só foram identificadas as cidades de Ramsés e Píton, no início da hipotética viagem referida no capítulo 33 do livro dos Números e Cadés, já no final do trajecto. A localização do mar e da montanha, criticamente importantes, é absolutamente desconhecida8. E a forma como se diz ter acontecido a travessia do mar das Canas é pouco verosímil. Todas as tentativas para a reconstituir não fornecem mais do que simples conjecturas quanto ao modo e aos elementos naturais e históricos que se combinaram para dar origem a esta tradição bíblica.
No relato desta viagem adquire especial importância a expressão "fazer sair (ou "tirar": fazer sair) do Egipto" (Êx. 20,2; Dt 5,6). Não se pode concluir que "fazer sair" ou "tirar" assinale unicamente uma "libertação", no sentido de resgate ou fuga do cativeiro. É preciso não só verificar até que ponto as nossas traduções se ajustam ao valor semântico das palavras usadas pelos autores do A.T. como igualmente ter em conta as expressões idiomáticas usadas: "sair" e "subir" empregam-se como simples verbos de movimento. Do Egipto para Canaã "sai-se" ou "entra-se", conforme os casos. Sair, pode designar, simplesmente a migração dum povo (Gn 10, 11-14; Dt 2,23), colocando a saída dos "hebreus" do "Egipto" em paralelo com a partida dos Filisteus de Creta ou dos Arameus de Quir (Am 9,7).
Há, ainda, algumas partes do texto bíblico que não estão de acordo entre si. Por exemplo, no Êxodo, o grande acontecimento da libertação através do mar das Canas é descrito de várias maneiras. Uma vez diz-se que Moisés estendeu a mão e as águas pararam, formando duas muralhas que se abatem sobre os egípcios (Êx. 14, 16. 21-22. 26-28). Outra, afirma-se que foi pela acção mecânica de um vento leste que o mar se dividiu em dois, enquanto o Senhor, da sua coluna de fogo, travou os carros dos egípcios, lançando-os em pânico (Êx. 14, 21-22). As tentativas para repetir este fenómeno numa superfície líquida com apenas meio metro de profundidade, usando a maquinaria actual, mostraram-se irrealizáveis. O mar Vermelho tem mais de dois mil metros de profundidade em certos pontos; e cerca de cinquenta metros no golfo do Suez, equivalente à altura de um edifício de dezassete andares. O que é mais lógico é aceitar é que o relato se refira a terrenos pantanosos ou inundados pela chuva prolongada que resultou da condensação do intenso vapor de água da Atlântida9 ou, ainda, a terrenos situados junto da orla marítima, facilmente alagados na preia-mar.
O autor que compôs esta narração juntou dois ou mais relatos afins sem se preocupar com os pequenos inconvenientes que derivam do seu modo de dizer e narrar. Esta circunstância não foi óbice para que se servisse desse método literário. Na presença de várias tradições antigas, cuja verdade histórica não pode ser comprovada, o autor reuniu-as sem se preocupar com pormenores, por vezes divergentes, unicamente atento ao ensinamento que essas tradições contêm, e que ele quer pôr em evidência no seu livro.
A história da travessia do mar das Canas tem significado idêntico à de Noé e o Dilúvio: é a descrição da migração dos pioneiros atlantes da primitiva humanidade para o Deserto de Gobi, na sua fuga às constantes inundações dos lugares que habitavam. Foi este povo o núcleo ou a semente dos semitas, os Israelitas da Bíblia. Moisés foi um chefe que personificou a linhagem dos mensageiros, especialmente sensíveis à mensagem dos deuses e atentos às instruções do espírito de raça10. Foram capazes de conduzir os povos da Terra (o simbólico Egipto bíblico), desde o tempo em que o Sol estava no signo do Touro até que pudessem adorar o Cordeiro, que era o signo onde o Sol entrava por precessão. Por isso, as duas narrativas  a da saída do Egipto e a da travessia das águas  referem-se ao mesmo acontecimento: a passagem da primitiva humanidade do submerso continente atlante, para as actuais condições ambientais em que os ciclos alternantes  Verão e Inverno, dia e noite, fluxo e refluxo, etc.  se sucedem ininterruptamente11.
Moisés é ainda o símbolo do passado, quando o tabernáculo, que era o templo dos mistérios atlantes, simbolizava o processo iniciático12. E a Terra Prometida não é somente a minúscula Palestina  é todo e qualquer lugar enxuto da Terra, onde a vida humana pode evolucionar durante a actual Época Ariana.
Ora, quando o espírito evoluciona até certo ponto, o corpo adquire um esplendor característico13. É este o sinal do mestre que era visível em Moisés, quando desceu do monte Sinai  um termo místico que significa, precisamente, lugar de iniciação14. O esplendor do corpo de Moisés é descrito no livro do Êxodo, 34,29-3515. Mas como S. Jerónimo, que foi o tradutor da Vulgata, confundiu o verbo qaran, que, na língua hebraica, significa brilhar, com o substantivo qeren, chifre, a tradição artística cristã deu a este apêndice o significado de força ou poder16. E é por isso que Miguel Ângelo (1475-1564), seguindo essa tradição, talhou assim a formidável estátua de Moisés, destinado ao túmulo de Júlio II, que está em Roma, na igreja de S. Pedro de Vincoli.
F. C.
Notas
1
Pedro R. Santidrián, Dicionário Básico das Religiões, Gráfica de Coimbra, 1995.
2 Sigmund Freud, Moisés e a Religião Monoteísta, Guimarães Editores, Lisboa, 1990, pág. 18-19.
3 Félix Guirand, Mythologie Générale, Lib. Larousse, 1937, pág. 195.
4 Junito Brandão, Dicionário Mítico-Etimológico, Ed. Vozes, 1991, vol, I pág. 306.
5 Id, ob. cit., vol. II, pág. 270
6 Norman K. Gottwald, Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica, Ed. Paulinas, S. Paulo, 1988, pág 190-191.
7 Max Heindel, Cristianismo Rosacruz, cap. IX, e J. B. Dubieux, O Simbolismo Patriarcal, in Revista Rosacruz, nΊ 350, OutΊ-NovΊ-DezΊ de 1998, pág. 6.
8 Norman K. Gottwald, ob. cit., pág. 194.
9 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo, 3ͺ ed., F.R,P. pág. 134 e 241.
10 Id., ob.cit., pág. 219.
11 Id., Iniciação  Antiga e Moderna, F.R.P. 1999, pág. 10-11.
12 Id., Letters to Students, Fellowship Press, 1975, pág. 100. Cf. Iniciação  Antiga e Moderna, F.R.P. pág 7 e seg.
13 Id., Conceito Rosacruz do Cosmo, pág. 319-320.
14 Id., ob. cit., pág. 135, Cf., Ensinamentos de um Iniciado, R.P.R., 2000, Cap. II.
15 Cumque descenderet Moses de monte Sinai tenebat duas tabulas testimonii et ignorabat quod cornuta esset facies sua ex consortio sermonis Dei.
16 M. Bernard Delaplanche, Une Erreur de Traduction de Saint Jérôme, in Revista LHistoire, nΊ 213; e Robert Deprez, Où L'on Parle des Cornes de Moise, in Revista LHistoire, nΊ 215, Novembro de 1997, pág. 93.
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