Artes e Letras

Gil Vicente
e o
Rosacrucianismo em Portugal

Dentro em breve irá ser editada a biografia de Francisco Marques Rodrigues. É um trabalho que nos deve merecer toda a gratidão e louvor, dada a grandeza espiritual e cívica e a magnitude da obra do biografado – que foi o nosso verdadeiro Mestre, o único que conhecemos – sem demérito algum para os bons professores que tivemos.

Um dos temas que Francisco Marques Rodrigues abordou nesta Revista de que foi proprietário e director foi: "A Origem do Ideário dos Rosacruzes"1.

Tal origem ser-nos-á mais clara se relermos, na obra Maçonaria e Catolicismo, de Max Heindel, o que ele nos diz acerca de Hirão Abiff, o responsável pela construção do Templo de Salomão. Antes de ser morto, diz aquele autor, Hirão recebeu um novo "malhete e uma nova palavra. O martelo tinha a forma de uma Cruz, e a palavra estava escrita num Disco"2. "Adormeceu", renascendo como Lázaro e, depois, como Christian Rosenkreuz (Cristão Rosacruz), altura em que o disco se converte numa Rosa.

No oitavo artigo do seu estudo, Francisco Marques Rodrigues diz que, com D. Dinis (1261-1336), a maravilhosa árvore da vida e da ciência acabaria por fortalecer em solo lusitano dando alimento espiritual a varões ilustres – como Gil Vicente (1465-1536), Pedro Nunes (1502-1578) e outros.

Sabemos que os ideais rosacrucianos já existiam em território nacional antes da independência, como ele também informa. Aliás, a fundação de Portugal está intimamente ligada à Rosacruz. É uma realidade que se verifica em vários testemunhos e até numa artística pia baptismal descoberta na zona Oeste de Portugal, que remonta ao século V: o seguidor dos Filhos de Caim que esculpiu esta obra simbólica talhou-a em mármore com belas pétalas de Rosa e deu-lhe o formato de uma Cruz. A inscrição que nela existe diz-nos tratar-se de uma obra "cristã-ariana"!

Há, hoje, cada vez mais referências ao facto de Paracelso, um iniciado rosacruz, ter visitado Portugal em 1518. No seu relato sobre essa estadia não identifica as pessoas contactadas por não o dever fazer, como ele próprio afirma. Todavia, sabemos que a missão de Paracelso, além de curar os enfermos por meio de uma "ciência maravilhosa", era a de incentivar o desenvolvimento dos centros de iniciação do cristianismo rosacruciano.

Por isso mesmo Francisco Marques Rodrigues, como iniciado que era, conhecedor da linguagem cifrada destes iluminados, revela-nos os nomes de alguns deles, dos que se terão saciado com essa água cristalina dos puros ensinamentos de Cristo.

Esta a razão por que Gil Vicente – a quem a rainha D. Leonor, protectora dos Filhos de Caim, não regateou ajuda – se revela profundo conhecedor das Ciências das Religiões unicamente através do teor contextual das suas obras. O que vemos nessas obras é a defesa que Mestre Gil faz dos ideais rosacrucianos pela sua perspectiva de natureza, digamos, "panzoísta", no sentido de uma ampla compreensão por parte do autor da existência de um substrato vital comum a todas as ordens de seres vivos. Leia-se, por exemplo, o Auto da Fé (1510), mas também o Auto da Alma (1518,) o Auto da Feira (1528) e a Floresta de Enganos (1536), onde se notam influências de Raimundo Lúlio, de Paracelso e alguma coisa de Erasmo.

Mas, acima de tudo, Gil Vicente é ele próprio, como deve ser um cristão rosacruciano, livre e libertador, tendo, como ideal, Cristo. Por isso, ora nos parece um luterano quando afronta o negócio das indulgências, a dissolução dos costumes do clero e aponta o dedo aos frades, aos bispos e até à Corte Pontifícia, ora se apresenta como um católico-romano no seu louvor à Virgem Maria, qual princesa divina, rosa branca, flor do Amo, como se vê no Auto da Feira: "Em Belém vila do amor/ nasceu a rosa do rosal:/Virgem sagrada./ Da rosa nasceu a flor:/ pera nosso Salvador (...)", etc. O grande mérito de Gil Vicente está na forma como revela a sua visão profundamente "panzoísta" da manifestação da Vida, de acordo com a sua concepção renascentista rosacruciana, onde, a par das concepções mitológicas, coloca a doutrina cristã e defende o princípio res, non verba, o que, em termos práticos, quer dizer: "as obras ficam, as palavras voam".

É de verdadeiro cristão rosacruciano a sua defesa dos judeus – ou antes dos cristãos novos de Santarém – contra os ataques do clero fanático e supersticioso que os considerava responsáveis pelo tremor de terra que assolara o país, e especialmente o Ribatejo.

Se no Auto de Mofina Mendes (1532) Gil Vicente nos desvenda algumas das suas predilecções literárias e doutrinárias ao citar numerosas personagens históricas, de S. Boaventura a Orígenes, de S. Jerónimo a S. Bernardo, etc., no conjunto da sua obra nos mostra uma visão autenticamente rosacruciana. Veja-se, por exemplo, como enaltece a fecundidade da Primavera e a renovação em O Triunfo do Inverno (1529). Ao considerar o ser humano como parte integrante da Natureza, a ela intimamente unida, também lhe reconhece a capacidade de se guindar acima do Mundo Físico, o mundo da ilusão, nas asas do Amor e da Pureza, para viver os valores reais e intemporais.

O que vemos, no fim de contas, é que Gil Vicente é um arauto da libertação, da modernidade, da renovação, do saber experimentado, da justiça, da dignificação do trabalho; em resumo, da Verdade – doa ela a quem doer.

D. D. C.

 

1 Revista Rosacruz, nş 261, Lisboa, 1976.
2 Max Heindel, Maçonaria e Catolicismo; F. R. P., Lisboa, 1997, pág. 41.




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