Artes e Letras

Uma Aventura na Serra do Espinhal

Nos meus tempos de estudante atravessava muitas vezes a serra do Espinhal, de ida para Coimbra ou de volta para casa.

E o que é certo é que em sonhos eu a percorria já e via no meu caminho uma casa apalaçada, onde numa das janelas e à minha passagem aparecia uma menina de cabelo entrançado, com um laço encarnado em cada trança e no peito uma rosa branca. Essa donzela era uma obsessão em cada sonho, aparecendo sempre. Assim passei a amá-la e esperava pela noite seguinte para a contemplar.

Sucede que numa tarde cheguei à vila do Espinhal e ao começo da noite aventurei-me serra acima em busca da minha terra natal. No cume perdi o sentido de orientação e andei às voltas tentando encontrar o caminho perdido no emaranhado do matagal.

Já de madrugada encontrei-me junto de uma casa antiga, onde se via luz. Bati à porta mas ninguém atendeu. Olhei em volta. No limiar da aurora que despertava o ambiente era fantasmagórico. No ar uma neblina, com aberturas aqui e ali, deixava ver pinheiros cujas folhas gotejavam orvalho da manhã, montes de verdura, e em volta do edifício um jardim cheio de flores onde predominavam rosas brancas. Um perfume penetrante sentia-se no ar e a brancura era tanta que parecia ter caído neve naquele ambiente irreal.

Como a porta estava encostada e ninguém respondia ao meu insistente bater, resolvi entrar.

Rangeu, como se de há muito não fosse aberta. Um corredor bastante longo se estendia e ao percorrê-lo fui dar a uma sala iluminada por velas, onde se encontrava uma donzela vestida à maneira antiga, com uma rosa branca pregada no peito. Era de feições belas, cabelo entrançado com um laço em cada trança e de olhos meigos, tal qual a tinha visto tantas vezes em sonhos. Dir-se-ia que já éramos velhos conhecidos.

Pedi desculpa e disse-lhe que me tinha perdido na serra, a caminho de minha casa, vindo de Coimbra onde estudava e que toda a noite tinha andado perdido no escuro e que era um alívio encontrar uma pessoa que me podia socorrer.

- Não tem nada que errar, respondeu ela, o caminho passa em frente da minha casa, no sentido do nascente, falando em tom tranquilizador. E já agora que está aqui quero mostrar-lhe os retratos dos meus familiares, que estão pendurados nas paredes desta sala e passou a descrever os seus antepassados de há muitas gerações atrás. Olhe aqui os meus tetravós, trisavôs, bisavós, os meus pais e este é o quadro do futuro onde estou ao lado de meu marido.

Olhei cheio de espanto para aqueles quadros, todos impecavelmente limpos, com figuras de cavalheiros que por certo tinham ocupado cargos régios, trajando principescamente.

Agradeci-lhe tanta gentileza, e disse-lhe que parecia conhecê-la de algum lado. Respondeu, sim, sou a rapariga dos teus sonhos e que algum dia, noutra geração serei tua. Grata por me amares tanto. Então nunca mais nos veremos? retorqui. Não, nesta vida, mas lembra-te, quando te sentires tão sozinho e desanimado, eu estarei contigo. Nos vales das sombras da mente notarás a minha presença.

Despedi-me atrapalhado, beijando-lhe a mão que achei fria e sentindo que estava perante uma criatura que já não era deste mundo.

Como a manhã despontava respirei uma lufada de ar fresco e segui tal qual uma cascata serra abaixo, cheio de nostalgia ansiando rever os meus amigos e a terra querida que me viu nascer. Os passarinhos cantavam, a cotovia subia às alturas e depois descia com a sua alegre melodia.

As abelhas zumbiam atravessando o cume da serra em busca de pólen e néctar. Mais tarde, quando por ali caçava, deparei com o local onde se encontrava a tal casa apalaçada. Era de tarde, o sol batia em cheio no jardim que a circundava. Anos antes parecia, tão bem cuidado e agora estava num abandono total. As rosas lá estavam, o mesmo cheiro perfumado, as abelhas, borboletas e as paisagens, mas a respeito de limpeza nada existia.

Tudo por ali crescia sem qualquer poda, tudo parecia de há muito completamente abandonado.

Bati à porta e nada. Tornei a bater, empurrando rangeu como da primeira vez. Percorri o corredor até à tal sala, onde deparei com montes de entulho, sujeira nas paredes e os quadros cobertos de pó.

Isto é uma casa de encantamento, pensei eu.

Por curiosidade contemplei com mais atenção o último quadro, aquele em que a aparição disse, ser aquele em que noutra geração estaria ao lado do homem que amava. Lá estava ela com ar sorridente, ao lado de um jovem que parecia satisfeito e por incrível que pareça se assemelhava a mim próprio.

Será que os desígnios de Deus também se projectam no futuro? Aqui está uma incógnita difícil de decifrar.

E não acaba aqui esta aventura.

Para meu espanto quando me sinto tão sozinho, embora acompanhado, quando a minha cruz se torna tão pesada que me sinto desfalecer, um perfume penetrante a rosas que me faz lembrar o tal jardim, me rodeia, confirmando a promessa da formosa donzela, de que em tais ocasiões estava sempre comigo para me animar. É por isso que a sinto bem perto de mim, como à boca de um forno se sente o calor do lume.

Amada do meu coração, meu primeiro amor, como eu gosto de te contemplar mesmo em sonhos e na solidão dos montes sinto que um dia hás-de ser minha.

Manuel Pereira da Silva




[ Índice ]