Artes e Letras
Pe. António Vieira (1608-1697)
e a Filosofia RosacruzConclusão
António Vieira é um homem complexo. A sua personalidade desdobra-se em vários génios. A obra de Vieira têm a marca do talento que os concebeu. Se, nos sermões, Vieira tenta obter resultados imediatos, mais quer ele prestar culto à verdade. Nas homilias dá-nos lições inteligentemente estruturadas com intrincados conteúdos filosóficos. Há neles muita arte e profundo conhecimento, mas admiravelmente disfarçado. Vamos analisar alguns passos do sermonário vieirino.
Sermonário Esotérico
António Vieira tem um conjunto de “trinta sermões ascéticos”, dedicados a “Maria Rosa Mística”. Foram publicados em dois volumes. O primeiro saiu do prelo em 1686 e o segundo dois anos depois. Destes sermões apenas o 15º é titulado. Este é que o autor parece considerar o mais importante de todos.
De acordo com a guematria, o 15 equivale a 6 (1+5) que é o símbolo do equilíbrio. Representa-se geometricamente pela estrela de Salomão. Significa “o que está em cima, é como o que está em baixo” e também nos fala das “místicas bodas”.
Na Bíblia, o início do aperfeiçoamento da vida espiritual até ao grau do itinerário que permite a união mística é referido na história do casamento de Boaz com Rute (Rute, 3, 15). O casamento místico só é possível depois de uma fase de preparação simbolizada pelas seis medidas de cevada. O número 6 está astrologicamente associado ao signo da Virgem. Os pitagóricos relacionaram-no com o planeta Vénus18. Este simbolismo numérico também é usado no Novo Testamento.
O apóstolo Mateus, por exemplo, constrói a sua parábola dos trabalhadores (Mt 20, 1-9), com base no simbolismo dos números 3, 6, 9 e 11.
A história de Rute, assim ligada aos grandes progressos da vida espiritual, vai completar-se no texto hermético do Cântico dos Cânticos.
António Vieira escolhe para tema deste sermão um passo bíblico do Cântico dos Cânticos (ou Cantares de Salomão)19. Mas o Cântico desafia a sagacidade do leitor. Não pode ficar preso ao sentido literal ou histórico. Tem de o descodificar. Não pode compreendê-lo a não ser acompanhado com o texto-chave da tradição profética (Os 2, 21; Is 62, 5) para interpretar o sentido espiritual alegórico. De facto, o Cântico não é um poema de amor humano: fala-nos das místicas bodas.
A maior parte das traduções não permite acesso às especificidades de sentido do texto. Algumas até o interpretam como um diálogo em termos de marido e esposa! Mas o texto não tem elementos que explicitem uma dimensão conjugal da relação no sentido institucional do termo. O próprio título é já intrigante: Cântico dos Cânticos. É um superlativo. Como dizemos Santo dos Santos para designar a parte mais sagrada do Templo, reservada ao Sumo-Sacerdote, o Cântico dos Cânticos define-se, logo de início, como um texto que desenvolve em cada versículo a doutrina dos sentidos espirituais que tornam a vida mística um conhecimento experimental dos mundos do espírito.
Recorre à alegoria. Mas este recurso não é um exercício gratuito e caprichoso. É uma forma de fazer circular o mistério, de descrever o plano da evolução segundo a coerência que pouco a pouco se descobre à clarividência20. A verdadeira leitura do Cântico toca vários níveis de sentido. O leitor espiritual poderá entender as suas palavras como a revelação ou o acesso ao mistério. Mais ainda: o leitor assim preparado verá renovar-se o sentido do texto à medida que aprofundar em si a experiência do divino. De facto, o texto não pode ter o mesmo sentido segundo é lido num ou noutro estádio do caminhar em direcção à iniciação. É um texto, como nota Orígenes, que se aplica bem aos aperfeiçoamentos da vida espiritual21. No Zoar, o Cântico é muito valorizado e venerado. O Zoar ocupa um lugar central na tradição mística e esotérica judia que se desenvolve a partir de meados do século XII22. Logo na abertura, o Zoar cita Ct 2, 12: Tal como uma rosa entre os espinhos, é a minha amada entre os jovens23. A sequência do texto solicita sistematicamente o Cântico ao ponto de ser possível ver nele um verdadeiro comentário dos livros bíblicos.
Trata-se, portanto, de um texto de iniciação nos altos mistérios. Não pode ser compreendido por quem não tenha feito já progressos na via espiritual.
Assim ligado aos grandes progressos da vida espiritual, tanto na leitura judaica como na tradição cristã, o Cântico refere-se a uma situação que corresponde a um dos mais altos graus da iniciação. Nos textos rosacrucianos está associado à formação do “Dourado Manto de Núpcias”24. E a ele se referem as Bodas Químicas, de João Valentim Adreae25.
O versículo que António Vieira transcreve, em latim, é composto por sete palavras. Foi recolhido do sétimo capítulo (Ct 7, 2): Venter tuus sicut acervus tritici vallatus liliis (o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios). O autor chama desde logo a atenção para o facto de estarmos em presença de um “misterioso livro”, escrito em “alto e metafórico estilo”. E explica como deve ser entendida a palavra liliis: “parece que soa e quer dizer lírios; entendida, porém, como se deve entender na sua original significação, é certo que significa rosas”.
Neste sermão temos a oportunidade de ver como o autor recorre a exemplos do mundo das sensações para alcançar o tema real, que é a assimilação do conhecimento que eleva ao verdadeiro estado místico. Fala do Cristo indigesto (não compreendido, assimilado), e lembra que “não basta que o homem coma, se as potências interiores do mesmo homem, que são os instrumentos da nutrição, não obrarem (assimilarem)”. Por outras palavras, o que António Vieira diz claramente é que, tal como é praticada a religião, observada mais do que vivida, não ultrapassa nunca a ordem de uma materialidade, de uma observância. Sem um movimento pessoal, uma decisão consciente de todo o nosso eu, a nossa assistência às cerimónias não passa de um rito pueril.
A persistência do modelo esotérico-iniciático das “núpcias espirituais” como um processo de potenciação e plenificação dos poderes do espírito, alcançadas pela via operativa e pela reflexão, pode identificar-se noutros passos da obra deste autor. Por exemplo, num outro sermão, onde recorre à imagem virtual do espelho: “Tome o filósofo nas mãos um espelho, e veja-se nele e verá uma só figura. Quebre logo esse espelho, e que verá? Pois assim como um cristal inteiro é um só espelho, e dividido são muitos espelhos, assim aquele círculo brando de pão, inteiro é uma hóstia e partido são muitas hóstias”26.
Originalmente, o espelho não é um simples objecto decorativo ou um acessório da vaidade. A importância de uma superfície polida está associada ao importante fenómeno da simetria e à sua capacidade de dissociar um objecto da sua réplica ou imagem virtual. A simetria desenvolve-se de modo coerente e rigoroso. Baseia-se na reprodução de propriedades dos elementos envolvidos. A natureza é caracterizada por simetrias. Umas são empiricamente entendidas. Outras são abstractas, mais intrincadas e não detectáveis pelos cinco sentidos. “Tudo quanto sucede no Mundo Físico reflecte-se em todos os outros reinos e da Natureza”27. E o inverso também é verdadeiro28. O Deus único de todas as religiões monoteístas, o Motor de tudo, originou as coisas à Sua própria semelhança. A criação divina é uma emanação demiúrgica e todas as criaturas são reflexos d’Ele. Ao mundo da emanação sucedem-se o da criação e o da transformação sendo, enfim, deixado como última ordem de referência, o mundo da acção ou da matéria.
O espelho converteu-se, por isso, num objecto associado à lei da analogia e ao conhecimento superior duma doutrina fortemente intelectualizada.
Embora no texto de Vieira não esteja explícita uma referência ao axioma esotérico “o que está em cima, é como o que está em baixo”, encontra-se nele o suporte do recurso ao espelho e à sua imagem virtual, formada segundo estruturas geométricas, para fundamentar o modo esotérico do seu pensamento.
O vale dos Cânticos é o mundo físico. O lírio associa-se à árvore da vida plantada no paraíso. Constitui um verdadeiro louvor ao casamento místico que se consuma quando o fogo espiritual começar a brilhar formando o “dourado manto de núpcias”29: O autor bíblico refere-se-lhe num dos versos: “Os teus olhos são como os das pombas escondidas atrás do teu véu”. “Sou a rosa de Saron, o lírio dos vales (Ct 2, 1)”. Saron é uma planície verdejante, vulgarmente associada aos tapetes de lírios espontâneos. Fica ao sul do monte Carmelo. Tanto o lírio como a rosa simbolizam o despertar dos centros espirituais. A rosa está associada à força positiva, à vontade; e o lírio à negativa ou imaginação. Salomão tem “uma liteira (...) escoltada por sessenta (=6) soldados hábeis no ‘manejo da espada’ e sem medo da escuridão”. A espada tem um duplo sentido. É a arma da “guerra santa”, que é uma guerra interior (Mt 10, 34). Mais importante do que a função destrutiva é a sua representação da acção criadora do Verbo. Na mitologia nórdica é o símbolo da castidade. Usada nas danças rituais têm uma função mágico-simbólica. No Apocalipse há uma espada que sai da boca de Cristo (Ap I, 16). A espada de fogo dos querubins significa, segundo Filo de Alexandria, o logos solar. Na tradição cristã, como arma dos heróis, está associada à cruz. Unindo a rosa ao centro da cruz, temos o nosso formoso emblema, muito usada desde o Renascimento e até por Martinho Lutero (1586-1654)30.
António Vieira não podia ter escolhido melhor tema para tecer a sua ligação ao “Colégio dos Sábios”.
Conclusão
O Padre António Vieira se pode dizer que é, além de insigne homem de letras, o evangelizador que só não foi canonizado porque “as suas ideias generosas nunca deixaram em sossego os espíritos de má fé”31.
Como cidadão e educador levou à pratica as orientações de Coménio. Fez da instrução o instrumento ideal para enriquecimento espiritual de todos os cidadãos e promover as relações interculturais. Antecipou-se à UNESCO cerca de quatro séculos. Pelo seu espírito de serviço os indígenas chamavam-lhe “Paiaçú”, o Grande Pai.
A sua mentalidade, que diríamos hoje universalista, atormentou a sociedade do seu tempo, intelectualmente policiada. Nunca se sobrepôs às realidades como também jamais se apagou diante de heróis, santos ou monarcas distribuidores de benesses e punições. Agiu com inteligência e firmeza no momento histórico em que o pensamento absolutista monárquico procurava defender-se das consequências políticas e culturais da reforma religiosa e intelectual.
Maria Rosa Mística – I Parte
Lisboa, 1686. É o 9º volume a 1ª edição completa dos Sermões do insigne orador. A impressão é da conhecida Oficina de Miguel Deslandes. Esta colecção, de 14 volumes, pertenceu a D. Lourenço António de Sousa da Silva e Meneses, 3º Conde de Santiago, parente de D. João V. Foi doada à Biblioteca da Fraternidade Rosacruz de Portugal.A possível ligação, aliás clara e notável, entre o pensamento vieirino e a filosofia Rosacruz, terá de se buscar de forma paulatina, paciente, através de possíveis contactos entre o seu pensamento e o de filósofos rosacruzes, quer através de possíveis contactos estabelecidos com estes filósofos durante as suas viagens.
Em António Vieira existe a deliberada intenção de dar expressão aos aspectos de um certo esoterismo cristão de raiz rosacruciana na compreensão dos textos bíblicos, na continuação de outros rosacrucianos, aliado ao rigor e originalidade dos seus escritos.
A independência e determinação que revela nas suas atitudes, a defesa de doutrinas arrojadas para a época e, enfim, o rigor e originalidade do seu discurso, representam os traços da inserção da mensagem histórica Rosacruz que, de modo discreto, introduz na sua prosa, cheia de surpresas, para muitas vezes se poder concluir algo diferente do que parece afirmar.
O Padre António Vieira deixa, por esses traços e pela sua inquietude existencial e humana, simbólicos também do seu ideal levado à prática, um sinal de real consciência e assumpção da filosofia Rosacruz.
F. C.
Notas
18 Corinne Heline, Sacred Science of Numbers, DeVorss 1985, pp 46-54
19 Sermão de N. S. do Rosário, Obras Completas, Lello & Irmãos, Ed., 1908, vol. 11, p. 287.
20 Vd. Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo, Cap. VI e ss, 4ª ed., 2005 pp 147 e ss, 253.
21 Orígenes, Homélies sur le Cantique des Cantiques, S.C. 37 bis, Commentaire du Cantique des Cantiques, Ed. Du Cerf., Paris.
22 Cf. Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo, 4ª ed., p. 252.
23 Zohar, Génese, Tome I, Verdier, 1981, p. 29.
24 Max Heindel, Iniciação Antiga e Moderna, Lxª, 1999; p. 35.
25 J. V. Adreae, Las Bodas de Christian Roseunkreutz, Edicomunicacion., SA, Barcelona, 1991.
26 Sermão do Santíssimo Sacramento, Lello & Irmãos, Ed, 1907, p. 104
27 Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmo, Id., p. 37.
28 Id., Ob. Cit., p. 45.
29 Max Heindel, Iniciação Antiga e Moderna, Id., p. 130
30 Cf. Id., Ob. Cit., II Parte, pp 67-123.
31 João A. Neves, O Profeta do Novo Mundo, Ed. Aquariana, S. Paulo, 1998.
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