Artes e Letras

Pe. António Vieira (1608-1697)
e a Filosofia Rosacruz


Muito justamente se pode comemorar o IV centenário do nascimento do Padre António Vieira, não só dada a projecção da sua obra literária, mas também e sobretudo pelo traço indelével da sua espiritualidade. Mais do que o intento de lembrar a efeméride deve reconhecer-se a oportunidade de um aprofundamento das suas elaboradas ideias, das fontes e da génese do pensamento vieirino. Das suas obras realçam os sermões, em primeiro lugar e a todos os títulos (literário, esotérico e filosófico), como um dos conjuntos mais valiosos. Para avaliar a sua importância dever-se-á ter em conta que não podem ser estudados apenas na perspectiva do pregador. Não se concebe oratória indiferente aos interesses do público. O texto literário de Vieira reflete, por isso, algumas preferências dos ouvintes. Mas vai muito além deles. Apesar de não querer expor-se, dada a sua modéstia, para não servir de alvo a críticas de profanos e invejas dos confrades, defende abertamente leis mais justas; tenta fomentar a riqueza pública.

Os seus ouvintes são de todas as condições sociais: nobres, clérigos e escravos. Sabe que o sermão é uma arte dirigida à corte e, quando muito, aos clérigos e aos fidalgos. Ainda assim, Vieira mantém a riqueza oratória mesmo longe do rei e dos nobres. Até lhes envia recados, responde a inimigos e detractores, castiga os vícios e traidores mesmo quando prega em S. Luís do Maranhão ou Salvador. Manifesta-se contrário à escravatura diante dos donos de escravos. Num sermão em que dirige aos escravos afirma: “...como dizia S. Agostinho, na vossa África, contentar-me-ei, que me entendam vossos senhores e senhoras; para que eles mais devagar vos ensinem, o que a vós, e também a eles, muito importa saber”1. Defende a pureza ascética perante sacerdotes indignos e frades mundanos. Não lhe falta coragem diante dos reis. Proclama as suas convicções e doutrinas mesmo estando em desacordo com os irmãos da Companhia de Jesus e da própria Igreja do tempo. Ao defender os judeus envolve-se numa rivalidade que opõe as duas instituições mais poderosas do tempo: a Inquisição e a Companhia de Jesus. Desagrada à fidalguia e ainda mais ao Geral do Santo Ofício. Acusam-no de ter ascendência hebraica: no Maranhão diz-se que foi “baptizado em pé”2. E tem de haver-se com o Tribunal do Santo Ofício. Um decreto do Conselho Geral, de 16 de Fevereiro de 1663, sujeita-o a um interrogatório sobre o conteúdo do escrito Esperança de Portugal, Quinto Império do Mundo. Em 23 de Dezembro de 1667 o Tribunal lavra a sentença condenatória. Fica privado de “voz activa e passiva”, quer dizer, não pode falar nem escrever. É queimado, “em estátua”, na cidade de Coimbra3.

 

As Viagens

António Vieira inicia a actividade diplomática em 1646. Neste mesmo ano vai a Paris e logo a seguir a Haia. Conferencia com as comunidades hebraicas. No ano seguinte desloca-se a Londres. Regressa a Paris e volta a Haia. Em 1669 segue para Roma.

A viagem à França e à Holanda ficou a dever-se a uma incumbência secreta de D. João IV. Só muitos anos depois se lhe refere sem, contudo, revelar pormenor algum4.

A análise escrupulosa das diferentes situações em que se encontram as nações europeias no ponto de vista da vida intelectual revela ou confirma que ela era, inegavelmente, mais livre nos países protestantes que nos católicos. As excepções só provam a regra. A Inglaterra de Cromwell aceita o programa científico do rosacruz Bacon; a Holanda calvinista abre as portas à República das Letras; a Suíça é o berço do Iluminismo europeu5. Não admira que a Holanda, e em especial Amsterdão, se torne, depois de 1656, um ponto de refúgio e encontro dos pensadores avançados de todas as ciências. Amsterdão é a “capital dos Rosacruzes”, em especial dos rosacruzes socinianos6. O que é certo é que António Vieira visita Amsterdão, cidade pouco distante de Haia, “tantas vezes quanto pôde”7. Ali reside o célebre alquimista Philalèthe e ali participa em debates com o famoso rabino Manassés-ben-Israel. Também se avista com Saul Levy Morteira, professor de Espinosa8.

As Ilhas Britânicas rivalizam com Amsterdão como centro mundial dos rosacrucianos da época. Desde 1620, o ano em que João Valentim Andreae publicou a sua obra mais influente, que Samuel Hartlib, na sua qualidade de “baconiano”, sonhava com a realização prática da “Nova Atlântida”, de Bacon. O projecto de Bacon pretendia que o “conhecimento útil” fosse ministrado para o “avanço das ciências”. Coménio está em Londres em 1641. Na obra Via Lucis, defende o desenvolvimento da civilização e a conquista da paz com base na cultura e no ensino universal de crianças e jovens.

Coménio e Hartlib são os organizadores da reforma baconiana. É graças às iniciativas dos comenianos que em 1662 nasce em Londres a Real Sociedade. Tem o apoio de Carlos II. O monarca inglês, casado com D. Catarina, filha de D. João IV, está muito à frente da sua nação na tolerância para com os diversos credos e religiões. Demonstra vivo interesse pela ciência. É ele quem dá a Carta-Patente e protege desde logo a Real Sociedade. Faz-lhe várias doações e participa nas suas actividades9.

António Vieira tenta visitar novamente a Inglaterra, no que é impedido. Revela-o numa carta dirigida a D. Catarina de Portugal. Pretendia falar-lhe de assuntos “que se não podem confiar ao papel”10.

Que a viagem a Roma tem um motivo pessoal relacionado com a revogação da sentença parece fora de dúvida. Prega, em italiano, na presença do Papa e dos Cardeais da Cúria romana. Entre os ouvintes está a rainha Cristina da Suécia (1626-1689), que vive na capital italiana depois de haver abdicado ao trono.

A admiração de Cristina da Suécia pelos patricarcas-fundadores da Fraternidade Rosacruz é bem conhecida. Interessa-se vivamente pelo projecto de Francisco Bacon e pela obra de Newton. Conhece pessoalmente João Coménio e com ele dialoga em latim, língua que aprendera pelos seus livros11. Na qualidade de antiga aluna de Renato Descartes quer proferir a oração fúnebre no seu funeral, em Paris, mas foi-lhe negado esse gesto de admiração pelo mestre12. Suspeita-se da sua fidelidade ao catolicismo. Em Roma, a rainha Cristina impulsiona inúmeras actividades culturais. António Vieira passa a frequentar o palácio Riário onde mora e se reúne assiduamente com a elite da Igreja, das Ciência e das Letras.

Curiosa primeiro, fascinada depois, Cristina da Suécia rende-se à inteligência e ao saber de António Vieira. Convida-o para seu confessor particular. Sem recusar, Vieira desculpa-se receando ser mal interpretado em Lisboa.

Em meados de 1674 o Papa já estava inválido. É o Cardeal Altiera quem prepara o Breve que isenta António Vieira “por toda a vida, de qualquer jurisdição, poder e autoridade dos inquisidores, presentes e futuros, em Portugal”. Na realidade, este Breve nunca foi integralmente cumprido. Mesmo assim, António Vieira teve o mérito de suspender a acção da Inquisição Portuguesa, ainda que durante uns breves sete anos13.

 

O Místico

O misticismo de Vieira não é emotivo. O que os textos deixam antever é uma forma de misticismo que, partindo do estudo das forças, das influências e das acções imperceptíveis aos sentidos, tem em mira a união com o divino. Para ele, a Escritura não é apenas uma narrativa de coisas passadas. É sobretudo “um arquivo onde a Providência tem depositado os seus segredos” que o pregador se esforça para decifrar14. Esta qualidade ajuda a explicar o que há de alógico ou de fantástico na obra de Vieira. E permite ligar a astrologia babilónica ao milagre cristão e à cabala judaica.

A cabala, com a sua crença mística no poder dos números, passou do judaísmo para o cristianismo. Na Bíblia, Antigo e Novo Testamento, transparece esta valorização mística do número.

Cada letra do alfabeto hebraico corresponde a um número, como na numeração romana. A Guematria é um dos ramos da cabala. Estuda o valor semântico das letras hebraicas e trata das várias operações teosóficas. Deduz o valor numérico das letras chegando, assim, às revelações sobre o sentido oculto das palavras. A ressonância do pensamento cabalista adquire relevância na temática vieirina. Diz ele: “Viu Ezequiel este homem de fogo que ia triunfante no carro, e querendo descrever a semelhança que tinha... escreveu as sete letras C.H.A.S.M.A.L. (...) Os cabalistas, como refere Cornélio, querem que sejam letras simbólicas, de que se acham muitos exemplos e mistérios no Texto Sagrado”15. E noutro passo: “...Que S. Mateus, na genealogia do mesmo, Cristo atendesse mais aos mistérios do número, que ao número dos descendentes”; “o número de gerações que se contém neste Evangelho (S. Mateus) foram três vezes quatorze”16.

A crença na Cabala é comum a muitos devotos cristãos do tempo. D. Francisco Manuel de Melo escreve uma pequena obra a que chama Tratado da Ciência Cabala. Nela emprega o seu talento para tentar demonstrar que o Cabalismo e Catolicismo são compatíveis17. Esta simpatia pela cabala tem longa tradição no cristianismo. S. Tomás de Aquino (1227-1274) serve-se da obra de Maimónides (1135-1204), uma das maiores figuras da mística judaica, para conciliar a filosofia de Aristóteles com a sua fé religiosa. Neste sentido, S. Tomás não é um reformardor: é, essencialmente, um compilador e codificador. O que fica dito a respeito dos dois filósofos pode dizer-se de muitos outros.

Conhecedor desses mistérios, Vieira usa-os recorrentemente na sua arte de pregar. Não vê interesse em doutrinar sobre coisas simples. Quer tornar claro o que é estranho, compreensível o aparentemente impossível, crível o incrível. Usando palavras simples, aborda ideias complicadas. Mas as frases de Vieira, que são límpidas e maleáveis pelo facto de saber aplicar, em cada caso especial, as palavras adequadas, podem continuar misteriosas. Como em certas manifestações de telecinésia. Vê-se o objecto e observa-se-lhe o movimento mas, ainda assim, o mistério persiste. O discurso claro de António Vieira não impede que as suas ideias continuem ocultas. O território do mistério é o seu latifúndio. Desbrava-o com as ferramentas da linguagem. Na maior parte das vezes usa a metáfora, a perífrase ou a sinonímia. No período barroco este recurso permite veicular ideias e doutrinas perigosas, não só do ponto de vista da Igreja como no do Estado.

Continua
No próximo número: Sermonário Esotérico

F. C.

 

Notas

 

1 Sermão Vigésimo Sétimo; Obras Completas, Lello & Irmãos, Ed., 1908, vol l2, 305.
2 Elias Lipiner, Os Baptizados em Pé; Vega, s/d, p. 27. Baptizados em pé: nome dado aos judeus baptizados colectivamente, adultos, à força.
3 J. I. Roquette, Cabras Selectas do Padre António Vieira; Paris, 1856, p. XLI. Os condenados presentes eram “relaxados (entregues) em carne” ao braço secular. Os ausentes eram relaxados em “estátua” ou em efígie. A “estátua” é um boneco feito de palha e estopa. Segundo Alexandre Herculano, “havendo razão para a pena capital, lia-se em auto público a sentença e se executava em um manequim que, figurando o réu, era com as usuais formalidades lançado à fogueira. Com os defuntos achados em culpa, quer falecidos nos cárceres (...) se procedia de modo idêntico” in História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal.
4 J. Lúcio de Azevedo, Coord.,Cartas do Padre António Vieira, Vol. III, Carta CCXXX, p. 572; Lx, Imprensa Nacional, 1971.
5 H. R. Trevor-Roper, Religião, Reforma e Transformação Social, Ed. Presença, p. 149.
6 Movimento religioso que surgiu no século XVI, cuja forte influência se identifica em Espinosa (1632-1677).
7 Pedro Cardim, Entre Paris e Amsterdão, Oceanos, nº 30/3l, 1997, p. 135.
8 J. Lúcio de Azevedo, História de António Vieira, l. Vol. Clássica Ed., 1992, p. 115.
9 Will e Ariel Durand, A História da Civilização, Vol VIII, “A Era de Luís XIV”; Ed. Record, 1963, pp 217-224.
10 J. L. de Azevedo, Coord.; Cartas do P. António Vieira, Carta CLII, p. 284, 2º Vol.
11 Didática Magna, Trad. Joaquim Ferreira Gomes, F. C. Gulbenkian, 3ª ed., p. 17.
12 Stephen Gankroger, Descartes, Biografia Intelectual; Contraponto, R. Janeiro, 2002, p. 361 ss. Samuel Hartlibe dá-nos alguns pormenores da vida do ilustre filósofo; Peter Godman, Histoire Secrète de L’Inquisition, Ed. Perrin, p. 152.
13 José Eduardo Franco (coord.) P. António Vieira, Imperador da Língua Portuguesa, Lxª 2008, pp 40-45.
14 J. L. de Azevedo, Coord; Carta ao P. L. Fuess, Carta CCXXXVIII, Vol. 3, p. 599.
15 Sermão de St. Inácio; Obras Completas, Id., 1908, vol. 7, p 387 ss.
16 Sermão Vigésimo Quarto; Obras Completas, Id., 1908, vol. 12, pp. 201, 203 ss.
17 Tratado da Ciência Cabala, Soilen, S. A, Montevideu, Uruguai, 1989.




[ Índice ]